Uma biografia do câncer: a história da doença e da cura, seus cientistas e pacientes
04/04/12 22:22A esquisitice dos sintomas impressionou mais até que a rapidez com que apareciam. Em poucos dias, a rotina se tornara impossível para Carla Reed, 30 anos, uma ativa professora do jardim de infância e mãe de três crianças: depois das escoriações nas costas, a descoloração da gengiva, a fadiga extrema e a dor nos ossos.
Acordou certa manhã com tal torpor na cabeça que decidiu ir ao hospital. Saiu de lá uma, duas vezes sem diagnóstico. Ao médico que parecia tão atrapalhado com o que via, ela mesma sugeriu, em outra visita, um hemograma.
Com a história de Carla Reed, que descobriu ter leucemia uma década atrás, Siddharta Mukherjee inicia seu “O Imperador de Todos os Males – Uma Biografia do Câncer”. A tradução chegou às livrarias faz poucos dias, pela Companhia das Letras. Escolhi fazer o post nessa véspera de Páscoa.
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Médico de origem indiana radicado nos EUA, Siddharta Mukherjee me deixou curiosa assim que sua obra foi resenhada pelo “New York Times”. Não só pelo tema e o modo como decidiu conduzi-lo, também pelos elogios recebidos num círculo que não era o seu –afinal, não é escritor profissional. A coleção de prêmios – como Pulitzer e “Guardian”, este concorrendo com ficcionistas — me levou a baixar a versão em e-book pelo Kindle em dezembro passado.
Achava que seria tão bom quanto “O Demônio do Meio Dia – Uma Anatomia da Depressão”, de Andrew Solomon, publicado faz um bom tempo pela Objetiva.
Os dois livros tratam de doenças numa abordagem que combina história, ciência, cultura e, principalmente, a experiência dos autores. Solomon, que entrevistou deprimidos em estágios diferentes, enfrenta há décadas seu próprio demônio. Mukherjee estudou biologia e imunologia, formou-se médico em Harvard, é oncologista e professor da área. O livro de Mukherjee é, sim, tão bom quanto o de Solomon. Este, em tom mais pessoal. O de Mukherjee, com mais história da ciência.
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A chegada de um paciente com leucemia aguda como Carla Reed faz o frio percorrer a espinha de todo hospital, descreve Siddharta Murherjee. O câncer que, como diz, não é um só mas vários tem na leucemia uma de suas encarnações mais violentas, pelo ritmo, intensidade e velocidade de crescimento, o que obriga médicos a decisões rápidas e drásticas.
Dos casos mais estranhos à busca da cura em laboratórios, tem-se um amplo porém minucioso panorama da doença. Ao contrário do que se pode prever tendo à frente tantos pormenores, o livro é ágil em suas mais de 600 páginas. Tem capítulos curtos, alguns com três, quatro páginas. Sobretudo é bem pesquisado e escrito; assim a leitura, pelo menos para mim, não se arrasta.
Sobre a história inicial do câncer há pouco a dizer, porque, como conta Murherjee, a doença era rara. Até o século 19, morria-se muito mais, e mais cedo, de peste, tuberculose, varíola e cólera. O câncer é um mal da civilização moderna não só pelos malefícios em maior profusão. A vida é cada vez mais longa a partir do século 20, e o câncer também está relacionado ao envelhecimento. Os diagnósticos também são mais precisos agora. Antes se podia morrer desse mal sem saber.
Do Egito anterior à era cristã data o primeiro registro escrito, num papiro de Imhotep decifrado na década de 1930. A autópsia da vítima mais antiga encontrada até hoje é feita por um paleobiólogo tempos depois, em 1990. Em um cemitério do Peru de mil anos atrás, ao perceber uma massa dura e bulbosa no antebraço esquerdo de restos mumificados, não hesitou no diagnóstico: era um tumor ósseo maligno.
O câncer aparece como notícia em jornais e revistas americanos nos primeiros anos do século 20. É obsessivamente tema de livros, teatros, filmes a partir da década de 1970. De doença clandestina, passa a cada vez mais presente e curável. A quimioterapia é uma das grandes revoluções na história desse embate. Nascem as campanhas contra o tabagismo depois que se constata uma epidemia de câncer de pulmão; exames como a mamografia e o Papanicolau são hoje semestrais.
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A história de Carla Reed, que intercala outras, de doentes e principalmente de cientistas, prossegue até o fim do livro.
Em sete meses, são 66 visitas médicas, 58 exames de sangue, sete punções espinhais e diversas biópsias de medula óssea.
Não vou contar como termina. Mas posso dizer que conheço mais de uma pessoa que se curou de leucemia.
Li, resenhei e recomendo. O que eu mais gostei foi a abordagem cientifica que é acessível sem esbarrar no didatismo.
sim, Amanda, ele é muito acessível.
O que me estranha é a quantidade de pessoas, além dos relatos que todos fazem sobre a vida anterior ao aparecimento da doença e a medicina, tão clara e pesquisadora, não tenha encontrado um remédio eficaz na cura do [lê-se] câncer.
FDLiz, o livro mostra exatamente o tipo de dificuldade que cientistas tiveram e têm. As pesquisas são conduzidas por décadas, por gente do mundo inteiro, gente inteligente e aplicada.
Eu curti isso!viva a saude
Comprei o livro já faz um tempo, impressionado pelo capítulo inicial. Mas deixei descansando – entou na fila… Depois de “Meus Lugares Escuros”, do James Ellroy, e impulsionado pelo post, eu passo ele na frente e encaro a viagem.
Não li esse do Ellroy, estou curiosa.
Eu não consigo largá-lo. São duas vidas, dele e da mãe, narradas em ritmo de policial.
esse livro é sensacional. e eu nem sou grande fã do Ellroy…
Não estou conseguindo linkar o post direto no FB, que coisa bizarra, “cai” na página geral dos Blogs UOL…
idem.
Gabi e Henrique, o erro também se repete comigo. Tento postar o link lá e aparece outra chamada com imagens de moças de costas, de biquini cavado. 🙂
“O Demônio do Meio-Dia” está na minha lista há anos e eu nunca li porque, como passei por uma depressão complicada, pensava em um dia escrever sobre o assunto – e não queria me “influenciar”, hehehe. Mas acabei desistindo, tanto que li o livro do Styron, agora não me lembro o nome, um relato pessoal pequeninho, “aumentado” de uma matéria que ele escreveu pra Vanity Fair.
E agora você me incentivou, ao dizer que “O Demônio…” é tão bom quando o livro do Murherjee! “O Imperador…”, já disse antes, é um dos melhores livros de não-ficção que já li. Achei muito curioso quando ele fala que as duas únicas doenças provocadas pela bile negra, numa crença antiquíssima, eram a depressão e o câncer. Tenho curiosidade pra saber se esse livro vai vender – acho que as pessoas preferem continuar escondendo a cabeça no buraco e não se informar sobre temas pesados ou difíceis. Ah, já estou divagando… 🙂
“O Demônio do Meio Dia” é muito bom. “O Imperador dos Males” também é, menos pessoal e com mais história da ciência.
Escreve seu livro, sim.
o livro se chama “Perto das trevas”. o Styron faz um relato da crise de depressão por que passou. é muito bom.
Entender as doenças e ouvir histórias sobre as mesmas parece ter se tornado uma maneira de exorcizar a carga que elas carregam.
Ler a respeito às vezes ajuda a, como dizem os terapeutas, elaborar internamente a questão.