Escutava várias coisas sobre Josely Vianna Baptista antes de conversar com ela.
Grande poeta que publica pouco, tal é seu perfeccionismo; tradutora caprichosa de autores importantes de língua espanhola; “uma mulher muito bela”, me confidenciou, antes de um suspiro, certo escritor uma vez — jamais contarei quem.
Não fosse por essas virtudes para reconhecê-la, existia em sua trajetória um assombro em particular: a famosa tradução, aos 20 e poucos anos, do monumental “Paradiso”, único romance em vida do poeta cubano Lezama Lima (1910-1976) publicado por aqui pela Brasiliense em 1987. Empreendimento difícil principalmente pelo seu estilo, experimental barroco.
A primeira vez que trocamos e-mails, um ano atrás, eu a procurei porque queria escrever uma das notas da “Painel das Letras”, coluna que assinava na Folha. A trabalho, e talvez pelo que conhecia de seus feitos, fui bastante cerimoniosa.
Josely estava –e ainda está— às voltas com uma retradução do “Paradiso”, 25 anos depois, para a Estação Liberdade. A previsão era publicar ano passado, mas não deu, ainda. Falta pouco, ela me disse outro dia.
A poeta não quis aproveitar nada da primeira tradução. Preferiu partir do zero. Isso, claro, me causou e causa espanto nos interlocutores.
Ninguém usava computador à época, então não há arquivo digital. O receio é também, como disse, o de “plagiar a si mesma”.
Ela me escreveu: “Deixei de lado a versão anterior e me aventurei, agora com a experiência de mais de 50 obras traduzidas, várias do próprio autor, e com a bagagem de duas viagens de prospecção à Cuba de Lezama Lima e a suas eras imaginárias.”
O ponto de partida agora é a edição crítica da Colección Archivos/Unesco, coordenada por Cintio Vitier, que também não existia naquele tempo.
***
Conheci uma Josely bem mais informal poucos meses depois pelo Facebook – na década de 1930, trocaríamos cartas?
Publiquei no meu mural duas imagens que chamariam obviamente a atenção de quem gosta da poética dos mitos. Foi quando a conversa recomeçou.
Uma imagem era a de uma árvore que dizem sagrada. Iroko, que representa o tempo para os iorubás, começa a ser ameaçada de extinção na Bahia, onde as construtoras avançam agora com maior ferocidade sobre a natureza.
A outra imagem, de Yemanjá, a divindade iorubá que guarda o mar, estava num azulejo do gravurista e pintor Calazans Neto (fiz um post no antigo blog) que fotografara naqueles dias.
Depois tratamos da semelhança dos nossos nomes (que vêm todos de José) e no quanto as pessoas costumam confudi-los; mais tarde, me anunciou seu “Roça Barroca”, livro que estava para sair pela Cosac Naify; da última vez, me lembrou de “La Giraldilla”, guardiã da baía de Havana (vá por aqui para ler a respeito, em espanhol), a linda imagem que posto abaixo. Bahia, Cuba e seus cinco séculos.
***
Na mala de viagem do fim-de-ano, levei para a Bahia o “Roça Barroca” –parte do volume reúne uma seleção do “Ayvu Rapyta”, mito da criação dos Mbyá-Guarani, a outra parte, poemas feitos durante a tradução.
Não era exatamente feriado para mim, pois precisava fazer muitas pesquisas e entrevistas para um projeto que, espero, ficará pronto até julho.
Repassava certa tarde toda a coleção da “Exu” – o “mensageiro”, outra divindade iorubá –, revista literária baiana que circulou na década de 1990. Numa dupla de páginas, ali estavam: as primeiras traduções do “Ayvu Rapyta”, com que Josely já se ocupava duas décadas atrás.
Não sei você, leitor, mas eu adoro essas coincidências.
***
Fiz esse pequeno texto sobre o “Roça Barroca”, publicado na Folha no último fim-de-semana, para ler sua íntegra vá por aqui.
Deixo, por fim, o trecho de um dos poemas de Josely incluídos no “Roça Barroca”, “Guirá Ñandu”, com o qual me identifico por várias razões, principalmente agora, em que ando tão metida numa grande pesquisa.
quem sabe o paraíso
que descrevem os antigos
não esteja além do vasto
nevoeiro e sargaço
mas no árduo percurso
vencido passo a passo
sem bússola ou mapa do céu
em pergaminho
A foto da capa de “Roça Barroca” é de Miguel Rio Branco.