História para o grande público: uma conversa com Isabel Lustosa
26/03/12 12:42
Começa a fazer um sol bonito em Paris nesses primeiros dias de primavera, mas Isabel Lustosa cedeu ao blog ontem, um domingo, um pouco do seu tempo ao ar livre para responder a perguntas sobre Dom Pedro I, as tantas obras que o fidalgo português inspirou no decorrer do tempo e o desafio de escrever para o grande público – perguntas que pensei em lhe fazer desde o post mais recente, a respeito do romance sobre o imperador escrito pelo best-seller espanhol Javier Moro.
É de Isabel, professora e pesquisadora que publica biografias e obras de abordagem histórica, o ótimo e relativamente recente livro sobre Pedro I, o da capa acima, publicado em 2006 pela Companhia das Letras.
O personagem ainda a acompanha: em Paris, onde fica até junho como titular da cadeira Sergio Buarque de Holanda, ligada à Maison des Sciences de l´Homme, uma das pesquisas em andamento trata de como a imprensa francesa noticiou o imperador quando ali morou entre a abdicação do trono no Brasil e a guerra em Portugal contra o irmão Dom Miguel – pelo que entendi, o cara fez muito sucesso na vida parisiense.
“O Império é Você”, de Javier Moro, deve ser a primeira representação literária de Dom Pedro I feita fora do Brasil. E também só me recordo de filmes e minisséries brasileiros. Em Portugal, houve algo do gênero? “Eu também não conheço versões romanceadas de sua vida a não ser as publicadas no Brasil por Sonia Sant´Anna e Vera Moll. Não tenho preconceito contra esse tipo de livro. O personagem merece. É rico, é contraditório, tem uma biografia movimentada que se presta bem ao romance. Tomara que façam mesmo um filme sobre ele. Só acho Javier Bardem um pouco velho para o papel. Dom Pedro I morreu com 36 anos.”
Se não Bardem, quem? “Gosto de Rodrigo Santoro, que tem cara de mais jovem do que é.”
Mas as biografias são muitas. “No campo do jornalismo de ensaio ou literário, digamos assim, é vasta a bibliografia liderada por Paulo Setúbal, Viriato Correia, Alberto Rangel, Assis Cintra e Luiz Edmundo. Creio que o fascínio por Dom Pedro I é mais brasileiro que português. Escritores importantes como Almeida Garret e Alexandre Herculano lutaram ao lado do nosso ex-imperador quando este voltou a Portugal para reconquistar a coroa para sua filha Maria da Gloria. A imagem que eles têm de Pedro I é muito mais reverente que a nossa. Existem também alguns livros sobre os dois irmãos, Pedro e Miguel, relativos à guerra vencida pelo primeiro e que pôs no trono Maria II. Creio que há mesmo entre os historiadores portugueses uma divisão entre miguelistas e pedristas. Estrangeiras, existem duas biografias bem conhecidas: a do americano Neil Macaulay e a da francesa Denyse Dalbien.”
Então há de fato muita diferença na visão que Brasil e Portugal têm de Dom Pedro I? “Creio que sim. Em Portugal, de onde saiu aos nove anos para só retornar aos 34, dois deles passados no campo de batalha, o que prevalece é a imagem do herói constitucional, do salvador da pátria que voltou para levar instituições modernas e liberais a um país dominado pelo absolutismo que seu irmão dom Miguel representava. Assim lá não tem muito lugar todo o folclore relativo às tantas amantes reais ou imaginadas que se lhe atribui.”
A transformação de Dom Pedro I em herói marcial, “certinho”, o Tarcisio Meira do filme, se dá no período militar? “As tentativas de tornar Pedro I um herói certinho como você diz seguem um pouco a linha adotada pela historiografia do século 19 que chegou aos nossos dias tentando sempre atenuar seus defeitos. Digo isto no prefácio de meu livro. Sobrou para Leopoldina, coitada, que alguns autores como Alberto Rangel quase culpam pelo fato de ter sido tão humilhada e maltratada pelo marido e por sua amante, Domitila de Castro. Mas obras como a do injustamente pouco lido e pouco citado Tobias Monteiro, a de Carlos Oberacker e, mais recente, a de Maria de Lourdes Viana Lyra, do IHGB, e a minha própria, vêm procurando jogar um pouco mais de luz sobre essa mulher tão interessante. Sua correspondência foi publicada também no Brasil há poucos anos.”
A obra de brasilianistas trouxe algum ângulo novo na análise da figura de Dom Pedro I no decorrer do tempo? “Gosto dos livros do Macauly e da Dalbien. Acho autores honestos que se estendem mais sobre aspectos da vida do imperador fora do Brasil e que ajudam a dar-lhe uma imagem mais universal. O trabalho de Dalbien foi muito inspirador para a pesquisa que desenvolvo atualmente.”
E qual é o Dom Pedro I que você encontrou? “É um personagem riquíssimo e que, espero, ainda vá inspirar muitos livros, filmes e peças de teatro. Pensando sobre ele, os autores e seus leitores são obrigadas a saber – e a refletir – um pouco mais sobre o Brasil e seus caminhos e descaminhos. Eu o acho fascinante em suas contradições e seus ideais. Seu dilema entre ser português e ser brasileiro. Sua atração pelas modernas idéias constitucionais e liberais que abraçou e os problemas que elas traziam para a plena realização de seu destino. Pois foi sempre um Bragança e nunca abriu mão das prerrogativas que considerava parte essenciais de seus direitos dinásticos. Do ponto de vista íntimo, havia suas paixões e emoções exaltadas que faziam contraste com os sentimentos afetivos mais delicados. Podia ser ao mesmo tempo simpático, jovial e familiar e hierárquico, autoritário e despótico. Violento e amoroso; patriota e cínico; generoso e avarento… tudo isto e mais alguma coisa foi Dom Pedro I.”
Você tem algum palpite para explicar por que o romance histórico tem sido um gênero pouco adotado por autores brasileiros, embora o leitor pareça gostar tanto? “O Brasil tem uma vasta tradição de crônica histórica, esse tipo de relato meio jornalístico meio literário, que é tão caracteristicamente nosso e que foi adotado por muitos de nossos escritores e jornalistas. De qualquer maneira, para lembrar alguns, Rubem Fonseca tem um ótimo livro sobre 1954, “Agosto”; Antonio Callado tem outro que adoro sobre a ditadura de 1964, “Reflexos do Baile”; “Incidente em Antares”, do Érico Veríssimo, pode ser considerado um romance histórico, sem falar de toda sua obra sobre a Guerra dos Farrapos. Mesmo os romances regionais de José de Alencar e algumas das obras de escritores nordestinos que contemplaram temas como o coronelismo e o cangaço podem ser incluídos, sem muito favor, no selo de romance histórico.”
Nas nossas universidades, a influência da Escola dos Annales acentua-se a certa altura e com isso o grande personagem desaparece das narrativas. Parece haver de novo uma revalorização do grande personagem, ao menos do ponto de vista editorial. “Creio que depois dos trabalhos de Carlos Guinzburg, Robert Darnton, Nathalie Zemon Davis, e da maior penetração não só das metodologias como também das teorias tem existido por parte dos historiadores um maior interesse em produzir uma obra historiográfica que atinja maior número de leitores sem prejuízo do rigor. Não é apenas a valorização do personagem mas também a convicção de que se chega ao universal a partir do particular. Não se trata apenas da produção de estudos de caso, de trabalhos monográficos, mas de uma produção que, partindo do particular, ouse pensar o geral. Para tanto o conhecimento da bibliografia teórica que contempla os mesmo tipos de problemas continua a ser referência obrigatória –sem que, no entanto, tal como se fazia nas teses antigamente, seja obrigatório resumi-la de forma fatigante e exaustiva nas primeiras páginas do livro, espantando o eventual leitor.”
De sua experiência com obras que buscam atrair um leitor não especializado, o que pode dizer das dificuldades, dos desafios? “Creio que escrever de forma clara e objetiva não deve ser obrigação exclusiva do autor voltado para o público não especializado. Felizmente a academia vai despertando para a importância da clareza da escrita, que em nada compromete o conteúdo, ao contrário, mais o valoriza. No caso específico da biografia dos chamados “grandes personagens”, cabe ao historiador manter-se preso ao solo, relativizando sempre, para evitar ser seduzido pelo seu herói. O conhecimento do contexto e das condições em que viveu o objeto de seus estudos é fundamental. Nunca esquecer que, sendo seu objeto de estudo um imperador ou um escravo no Brasil do século 19, eram homens agindo de acordo com suas circunstâncias, suas paixões e interesses. Esses têm que ser bem conhecidos, analisados e explicados. ”