Ronaldo Pelli, jornalista brasileiro que vive em Londres por esses tempos, fez para Livros Etc esse relato bacaníssimo em texto e imagens sobre Dublin num dia de Bloomsday, no último sábado.
Quem quiser acompanhar o que ele escreve, vá por aqui, para visitar seu blog, que se chama Conto no Canto, ou procure suas colaborações no blog do “Prosa e Verso”, do Globo, vá por aqui, para ler uma das mais recentes, sobre Jorge Amado em Londres.
Dublin cheirava a malte ao cair da tarde do último sábado. Gaivotas passeavam pelos céus da cidade, lembrando que, apesar de uma capital, estamos em uma ilha, e bem perto do mar. Mais cedo, uma pequena multidão de dublinenses e turistas, com trajes específicos e carregando um livro tal uma bíblia, seguia um roteiro único num dia que para eles é quase sagrado: 16 de junho. Se o aroma do grão de cevada torrada pode ser decifrado pela presença da fábrica da Guinness na cidade, a trajetória desses visitantes tão característicos se explica por um outro motivo único: o Bloomsday.
Nossa jornada em comemoração ao épico modernista “Ulysses” na capital da República da Irlanda começou no centro cultural que leva o nome do autor desse monumento. O James Joyce Centre fica localizado estrategicamente na North Great George Street, a poucas ruas da famosa Eccles Street. No número 7, na ficção, vive o personagem principal, Leopold Bloom, que nessa mesma data, em 1904, realiza sua aventura pessoal. Na vida fora do livro, o 7 Eccles Street foi o endereço de John Francis Byrne, amigo de Joyce, com quem o escritor se encontrava com regularidade quando visitava Dublin.
Consta em uma placa no centro cultural que em 1909, Byrne e Joyce, como Bloom e Stephen Dedalus, deram um longo passeio pela cidade e, na volta para casa, Byrne assim como o outro habitante daquele espaço, se esqueceu da chave, e teve que escalar o muro para entrar em casa – igual a cena narrada no “Ulysses”. A casa não existe mais, deu lugar a um hospital. A porta foi retirada e ficou por muito tempo no também joyceano pub Bailey, e hoje adorna o andar térreo do centro cultural, servindo de moldura para fotos diversas.
O centro não é apenas um museu. Em um dos ambientes, há uma mesona onde livros de e sobre Joyce se espalham e dão a oportunidade para os neófitos sentirem, sem medo nem pressão, um gostinho do autor que é preconcebido como difícil. No cômodo ao lado, onde ficam quadros que mostram a família de Joyce, um rapaz vestido com trajes edwardianos, anuncia para quem quiser ouvir que começará a ler um trecho do livro. Alguns se aproximam, outros continuam a ler, o tempo passa vagarosamente.
No terceiro andar, é possível assistir a um documentário, mostrando a dificuldade que Joyce enfrentou antes, durante e depois da publicação de seu livro, pela Shakespeare & co. editora de Paris, da norte-americana Sylvia Beach. Aliás, a quantidade de conterrâneos de Beach em Dublin nesse fim de semana – a maioria absoluta dos entusiastas da data – leva a crer que a nacionalidade de Beach deve contribuir em algo para a fortuna do livro nas terras acima do Rio Grande.
A próxima parada da Dublin joyceana foi a Duke Street, do outro lado do Rio Liffey, perto da Trinity College, renomada faculdade fundada em 1592, pela rainha inglesa Elizabeth I. No caminho, grupos de leitores que, vestidos a caráter e com prazer estampado no rosto, paravam a cada esquina citada no livro para ler e compartilhar o trecho em questão. É uma festa, um carnaval à dublinense. Literário, mas em comunhão de todos com todos.
Em frente à Books Upstairs, na rua College Green, encontramos outro grupo paramentado e… não pode ser… ele morreu em 1941… Será que Joyce, que escreveu tanto sobre metempsicose no “Ulysses” migrou sua alma – e a sua aparência – para outra pessoa? “John”, chama um dos fotógrafos presentes, e ele atende. Ufa. Não é ele, não é James. Mas a semelhança é impressionante.
Seguimos em direção à Duke Street. É lá onde ficam tanto o pub Bailey, que não aparece no livro, mas que era frequentado por Joyce, quanto o pub David Byrne, onde Bloom come seu sanduíche de queijo com uma taça de Borgonha. A rua está lotada. Todos vestidos como personagens saídos das páginas da obra, todos lendo trechos, conversando, trocando impressões, experiências. Decidimos pelo Bailey, menos lotado, e optamos por um cardápio bem ulisseano: fígado e rim, com o vinho, para acompanhar.
Dentro do bar, interpretação de trechos do livro por um ator, que era acompanhado de um violinista, e muita conversa sobre outras trajetórias nesse Bloomsday. Pessoas que foram às Martello Towers, ou que visitaram o Prospect Cemetery. Gente que viajou o mundo apenas para ir a Dublin conhecer a cidade onde se passa o livro. Um grupo de pessoas que se sente parte de um clube, mas que não tem nada de exclusivo, nem chato. Pessoas que admiram a erudição de Joyce, e se divertem com o humor do escritor.
Com um convite para uma festa e informações sobre outros acontecimentos do Bloomsday, partimos do pub, dando uma passadinha no David Byrne, logo em frente, para o conhecer por dentro. Em seguida, fomos ao parque St. Stephen’s Green, onde uma maratona tentava abarcar toda a importância da obra. Assistimos a coros, grupos espanhóis interpretando o texto traduzido na língua materna de Molly Bloom, cantores a demonstrar seus talentos a capella, mini-óperas, e leituras e mais leituras e mais leituras de trechos diversos. Para terminar o dia, visitamos a biblioteca nacional da Irlanda que expunha um original do último capítulo de “Ulysses” e fazia interpretações da forma como Joyce o escreveu.
Após essa pequena odisseia, chegamos à conclusão de que feliz é a cidade que tem um dos escritores mais famosos do século 20 para promovê-la. Dublin, nomeada pela Unesco cidade da literatura, e berço de quatro prêmios Nobel do ramo, tenta retribuir a James Joyce as homenagens recebidas. Como se sabe, o autor que escreveu a maior parte de suas obras num autoexílio queria “criar uma imagem de Dublin tão completa que se a cidade desaparecesse repentinamente da Terrra, ela poderia ser reconstruída de seu livro”. Com “Ulysses”, ele fez seus leitores e admiradores reconstruírem não apenas o espaço físico, mas igualmente o tempo em que a história se passa. Em Dublin, no Bloomsday, realidade e ficção são uma só.
Legendas das imagens, todas de Ronaldo Pelli : Estátua de Joyce numa das ruas mais movimentadas de Dublin, na Earl St North, à esquina da O’Connell St; um dos ferries que liga o país de Gales à Irlanda se chama “Ulysses”; a vitrine exibe edições de “Ulysses”, entre as quais uma brasileira; a porta é a do famoso número 7 da Eccles Street, onde mora Leopold Bloom; duas imagens do interior do centro cultural que leva seu nome; vestidos à caráter, fãs declamam na Duke Street; mais gente com roupas de época, vistos também no centro cultural.