O "Gore certo" e a história americana que não ensinam na escola
01/08/12 13:38O cara chamava seu país de “Estados Unidos da Amnésia”. Foi por meio século um dos seus mais importantes críticos em romances históricos, ensaios e entrevistas. Numa crise americana tão profunda, como não era procurado para falar?
Fazia tempo que não via nada sobre ele. Ano passado, tentei de todo jeito encontrá-lo. Gore Vidal, morto hoje aos 86, estava já bastante doente. Reproduzo o texto que publiquei na ex-coluna/blog à época.
“Está à venda por US$ 4 milhões a mansão de Gore Vidal, 85, em Hollywood. Em meio à crise, é uma das poucas notícias recentes encontradas sobre o autor que mais se dedicou a ficcionalizar a história do império americano, uma série de sete livros que começou em 1967 ao publicar “Washington DC”. Onde está um dos mais ferinos críticos do país que ele chamava jocosamente de “Estados Unidos da Amnésia”? Recolhido, não quer dar entrevista, respondeu sua agente literária ao ser procurada por esta coluna.”
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Foi com Gore Vidal um dos dias mais importantes na minha vida como repórter, doze anos atrás, quando era correspondente da Folha em Londres.
Às vésperas das eleições em que concorriam Al Gore, um seu parente, e George W. Bush –eleições que terminariam daquele jeito, com votação infinitas vezes questionada –, ele estava no país da rainha para autografar “The Golden Age”.
Dias antes, por telefone, sua editora me disse que seria “impossível” uma entrevista. Insisti tanto, que ela me sugeriu: “por que você não vai à livraria e não tenta fazer umas perguntas?” Fiz isso, e não deu certo. Quando chegou a minha vez na fila, a resposta, seca: “não, não vou falar com jornalistas” (foi impressão minha, ou ele fez um meio-sorriso ao escutar “Brasil”?)
Atrás dele, uma assessora de imprensa, que era absolutamente britânica, me veio com uma solução à brasileira. Fez um sinal para mim, fui até ela, que me disse, de lado:” espera por aqui, pois ele vai ter de assinar uns livros [livros que ficam à venda na livraria]. Isso o deixa muito mal humorado, se conversar com você, vai se distrair.”
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A entrevista saiu na “Ilustrada” em 1 de novembro de 2000: O “Gore certo”, como ele brincou, foi preciso e profético.
Com “The Golden Age”, Gore Vidal encerra série de sete romances históricos sobre os Estados Unidos
Autor prevê que império americano será “menor e menos agressivo” no próximo século
Associated Press |
Gore Vidal, em 1960, na sua casa em Tarrytown (NY) |
JOSELIA AGUIAR
DE LONDRES
A senhora inglesa de meia-idade, há mais de meia hora na fila, pede para fotografar Gore Vidal, que sorri apenas, sem dizer exatamente que concorda. Minutos depois, o leitor assíduo traz uma rosa amarela com seus cinco livros de uma só vez para o autor autografar. A mulher com lápis e bloco de desenho está silenciosa no canto da livraria, à espera para fazer seu retrato. De novo, o autor responde aos pedidos com meio sorriso.
Nunca se pode dizer ao certo quando o autor norte-americano de 75 anos, conhecido pela acidez de sua escrita, abandona a ironia. Foi com sua incansável visão mordaz que, desde os anos 60, Gore Vidal se tornou um dos maiores escritores do seu país, ao iniciar uma série de romances históricos sobre a criação do que chama de império americano. Costuma dizer que seus livros revelam o que as patrióticas aulas de história não contam sobre os Estados Unidos: a verdade.
Gore Vidal cresceu em Washington e conviveu com representantes legítimos desse império -de alguns, estava ou ainda está próximo por certo grau de parentesco. Al Gore, vice-presidente dos EUA e candidato democrata nas eleições do próximo dia 4 de novembro, é seu primo distante.
Na última quarta, Gore Vidal autografou seu novo livro, “The Golden Age” (A Era Dourada), em uma das mais tradicionais livrarias de Londres, a Hatchards, em Piccadilly. O livro acaba de ser comprado pela Rocco e deve ser lançado no ano que vem no Brasil. Leia a seguir os principais trechos de sua entrevista à Folha.
Folha – Com “The Golden Age”, o senhor de fato encerra a sua série de livros sobre a construção do império americano?
Gore Vidal – Nesse livro, o sétimo, falo dos anos 40 e dos anos 50. É o período em que Franklin Roosevelt adquire a maior parte do mundo para os EUA.
Depois vem Harry Truman, que joga a bomba no Japão e cria a corporação global. Eu levo a história até o começo do ano 2000. Acho que contei tudo. O que importa é dizer como o império se criou, definir como fomos e quem fomos. Parte da história todos conhecem. Outra parte ninguém contou até então.
Folha – A América continua tão poderosa hoje quanto no passado?
Vidal – Sim. A União Soviética desapareceu. Não há mais alternativa ao império americano. Não há sinal de outro poder que rivalize com o norte-americano. Os EUA são o único poder global. Gostaria de substituir esse império atual pela república antiga, mas ela se perdeu nos anos 50.
Folha – Pode-se aprender com a história?
Vidal – A América tem razões para não cultivar o passado. Somos culpados e, ao contrário do que diz nossa própria propaganda, detestados.
Os EUA sempre agem de má-fé com outros países. Sejam sempre cautelosos ao lidar conosco. Interferir nos outros países é um hábito que não devemos perder.
Folha – Como será o império americano no próximo século?
Vidal – Aos poucos, nós nos tornaremos menores e menos agressivos. Provavelmente vamos nos tornar alguma coisa entre o Brasil e a Argentina, quem sabe um poder médio.
Folha – A cultura americana também domina o mundo como extensão desse império?
Vidal – Não estou tão certo de que a cultura americana seja tão dominante. Entretenimento é um grande produto que exportamos, depois de armas. Temos obtido sucesso com isso. Mas o mundo é um lugar muito grande. Um bilhão de chineses têm sua própria cultura. A Índia também tem seu 1 bilhão de habitantes.
Folha – Certa vez o senhor afirmou que a audiência dos livros diminuiu. E ironizou dizendo que havia praticamente mais escritores do que leitores. O senhor realmente pensa assim?
Vidal – Os diretores de cinema assumiram o lugar dos romancistas. O cinema se tornou a forma de arte preferida. A ficção se aproximou da poesia nisso. Não há mais um grande público, e sim uma minoria que a aprecia. A ficção não é mais essencial.
Folha – Por que isso aconteceu?
Vidal – As gerações crescem vendo TV e não aprendem a ler muito bem. Uma cabeça talhada pelas imagens trabalha diferente de uma cabeça moldada pela datilografia linear. Não saberia dizer a diferença.
Folha – O que o senhor escreve atualmente?
Vidal – Eu acabo de lançar uma nova peça na Broadway, há dois meses. Agora uma nova peça deve entrar em cartaz. Tenho de escrever vários ensaios. Nenhum romance agora.
Folha – Às vésperas das eleições nos EUA, como o senhor imagina o governo de seu primo Al Gore?
Vidal – Bem, ele pode perder, não é? Infelizmente meu primo Al é o Gore errado. Eu sou o Gore certo. Mas o país não é governando por presidentes, e sim pelas grandes corporações. Quem for presidente será pago por elas, e os presidentes vão fazer o que elas querem.
Livro: The Golden Age
Autor: Gore Vidal
Editora: Doubleday
Quanto: R$ 55 (448 págs.)
Onde encontrar: www.livcultura.com.br, www.amazon.com,www.bn.com (US$ 22 nos sites norte-americanos)
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Gore Vidal concedeu à Folha, sete anos depois, essa ótima entrevista feita por Sérgio Dávila: vá por aqui.
Entre os obituários que vi hoje, dois links: Uma seleção de frases, vá por aqui, do “Guardian”, e uma lista de ódios de Gore Vidal, no “Huffington post”, por aqui.
josélia!
resolvi me inscrever no concurso do sesc, o do vídeo!
vou deixar aqui o link da votação: http://www.sescsp.org.br/sescnabienaldolivro/
Sugestões livrescas: A CPI que abalou o Brasil, de Leonardo Attuch; A esperança estilhaçada, de Augusto Nunes; Como a corrupção abalou o governo Lula, de Luiz Otávio Cavalcanti; Já vi esse filme, de Luiz Maklouf Carvalho; O que sei de Lula, de José Nêumanne Pinto; O chefe, de Ivo Patarra; Memorial do Escândalo, de Gerson camarotti; Lula é minha anta, de Dyogo Maynardy; Honoráveis bandidos, de Palmerio Doria; O país dos PeTralhas, de Reinaldo Azevedo e O lulismo no poder, de Merval Pereira.
A esperança venceu o medo, mas Sarney, Aguinaldo Veloso Borges, José Mentor, Renan Calheiros, Delúbio Soares, Jader Barbalho, José Dirceu, Pedro Corrêa, Waldomiro Diniz (flagrado recebendo propina de Cachoeira), Marcos Valério, Benedito de Lira, Silvio Pereira, Rogério Buratti, João Paulo Cunha, Duda Mendonça, Silvio Costa, Collor, José Janene, Ângela Guadagnin (a dançarina) e Maluf (a cereja do bolo do bando) não foram derrotados.
Lamentável!
Ele resolveu doar todos os seus livros para bibliotecas, mas só para aquelas em que o leitor tem acesso aos livros, aquela biblioteca que coloca funcionários entre os leitores e os livros não receberão nenhuma pagína. Grande Vidal!
e ele vai continuar sendo o Gore certo por muito tempo ainda…
🙂
li várias dessas listas de frases que fizeram, ele era mesmo brilhante.
Gore nunca se entregou às mentira e à propaganda norteamericanas.Um norteamericano honesto, pasmem!
a América é muito grande e tem muita gente honesta. Uma pena é ele ter sido um dos poucos que, em certo período, criticaram sozinhos, a crítica é parte da democracia.