Adonis, a moderna poesia árabe
16/07/12 19:18Espero este livro há uns sete anos.
Em 2005, fizemos na finada EntreLivros uma edição especial só sobre cultura árabe. Foi quando Michel Sleiman, autor de textos incluídos no tal volume, me contou de Adonis (pronuncia-se como oxítona), considerado por muitos o maior poeta árabe da atualidade e até então nunca traduzido por aqui. Quer dizer, Sleiman já trazia Adonis para o português por conta própria mas uma edição desses poemas não era prevista.
Via Adonis como um dos mais cotados candidatos ao Nobel e isso só aumentava minha curiosidade –não tenho planos de aprender árabe nessa encarnação e confesso que nunca busquei edição em francês. Ano passado, dias antes de sair o prêmio para o sueco Tomas Tranströmer, procurei Sleiman com a expectativa de que Adonis venceria e tive a notícia de que estava a caminho essa antologia da capa ao lado. Chegou agora às livrarias, pela Companhia das Letras.
As pessoas fazem às vezes muita confusão quando pensam ou falam em mundo árabe. Nem sempre entendem que 1- a cultura árabe é anterior ao islamismo; 2-o islamismo chegou a culturas não-árabes; 3-os que professam a fé islâmica não são necessariamente radicais (embora muitos o sejam); 4- há árabes ateus, cristãos, até evangélicos e judeus (!); 5-na história, houve épocas de intenso e pacífico convívio, como quando Córdoba, na Andaluzia ocupada por árabes, judeus e cristãos, era considerada o ornamento do mundo, ali pelo século X.
A imprensa nem sempre ajuda a desfazer mal-entendidos, muitíssimo pelo contrário. E mesmo quando o jornalista sabe disso tudo –eu, no caso– não tem às vezes como evitar que 1- a capa do tal volume saísse com uma chamada que dizia algo como “A fé une o mundo muçulmano” (o que não é exatamente errado, mas provoca atrito com o chapéu, o enunciado que vinha logo acima, “Para entender a cultura árabe”) e 2- parte da iconografia incluísse imagens da cultura persa, com quem os árabes tiveram história de invasão e conflitos, sem que isso fosse explicado nas páginas (melhor não entrar em detalhes sobre todo o debate que se deu com a equipe que cuidava da iconografia). Não são problemas de pouca monta, mas, numa discussão editorial séria como essa, acaba-se por ser chamado de preciosista, de novo por causa das tantas generalizações e preconceitos que existem, fazem parte do senso comum.
Adonis, que é sírio, tem também ascendência libanesa, cidadania que adotou a certa altura, quando o tempo fechou no país onde nascera em 1930 (região que vive outro turbilhão agora). Anos depois, radicou-se na França. Quase sempre é apresentado como “poeta pagão” e “poeta do mundo”; foi um renovador da poesia árabe, modernizou-a com versos livres e sem rimas. Rompeu assim uma tradição milenar, que remonta à época pré-islâmica, quando os versos eram suspensos em tecidos nos grandes mercados –“Os Poemas Suspensos”, antologia traduzida por Alberto Mussa, saiu pela Record em 2006, capa à direita. O leitor deixará o blog feliz se conseguir se recordar de outro poeta árabe traduzido para o português e avisar nos comentários. Traduzir poesia é difícil, temos pouquíssimos tradutores de árabe no país (contei certa vez apenas cinco) e edições de poesia árabe não costumam ser comercialmente atrativas para as editoras.
A poesia é (ou era) tão presente na vida árabe que, como contou Adonis e Amin Maalouf ao se recordarem da infância na ótima mesa da Flip em que trataram de cultura e política, os versos costumavam ser guardados de memória, aos montes, e ditos em casa, entre parentes e amigos, como parte do dia-a-dia. Não foi pouca a recitação no encontro com Adonis na Livraria Cultura, em São Paulo, dias atrás, quando leu seus poemas em árabe, a versão em português a cargo de Michel Sleiman e de Safa Jubran, também tradutora e outra especialista que conheço desde a época remota da EntreLivros.
Encerro o post com essas belezas, trechos de “Guia para viajar pelas florestas do sentido”, incluído na nova antologia:
O que é o caminho?
anúncio de partida
escrito em folhas que o pó desenhou.
O que é a árvore?
lagoa verde cujas ondas são o vento.
O que é o vento?
alma que não quer
habitar o corpo.
O que é a morte?
carro que leva
do útero da mulher
ao útero da terra.
O que é a lágrima?
guerra perdida pelo corpo.
O que é o desespero?
descrição da vida na língua da morte.
O que é o horizonte?
espaço que se move sem parar.
O que é a coincidência?
fruto na árvore do vento
caindo entre as mãos
sem se saber.
O que é o não sentido?
doença que mais se propaga.
O que é a memória?
casa habitada só
por coisas ausentes.
O que é a poesia?
navios que navegam, sem portos.
O que é a metáfora?
asa aliviando
no peito das palavras.
O que é o fracasso?
musgo boiando no lago da vida.
O que é a surpresa?
pássaro
que escapou da gaiola da realidade.
O que é a história?
cego a tocar tambor.
O que é a sorte?
dado
na mão do tempo.
O que é a linha reta?
soma de linhas tortas
invisíveis.
O que é o umbigo?
meio caminho
entre
dois paraísos.
O que é o tempo?
veste que usamos
sem poder tirar.
O que é a melancolia?
anoitecer
no espaço do corpo.
O que é o sentido?
início do não sentido
e seu fim.
***
Adonis lê seus versos, Sleiman observa. Safa Jubran se integrou ao grupo depois.
Os trechos selecionados são de tirar o fôlego. Isca perfeita para quem, como eu, não conhecia este autor.
Ótimo texto. Procure no google: LIVRO CIBERCÉLULAS. Este livro irá te surpreender!
Boa tarde !
Muito boa a sua participação no roda viva.
Mais um autor para a lista de próximas leituras…
Obs.: acabei de ver o Roda Viva! Muito bacana a sua participação (;
Fantástico o poema do Adonis. Seus versos sobre o tempo e a história são alguns dos mais belos que já li. Vou comprar o livro dele, com certeza.
Sérgio, o livro é excelente –esses são apenas alguns trechos!
Olá, parabéns pelo seu blog!
Se você puder visite esse blog:
http://morgannascimento.blogspot.com.br/
Obrigado pela atenção
Ótima explicação, para abrir a cabeça de muitos que se cegam na falta de informação, cultura, etc… belos resumos de história.
Abraços desde Barcelona, estou adorando o seu blog.
Ed
Barcelona. Que linda cidade.
“O que é o tempo? veste que usamos sem poder tirar.”
O que dizer além do que foi dito acima? Esses versos contêm a essência, o âmago da existência. Obrigado por me apresentar a eles.
que bom que gostou, Paulo.
obrigada pela leitura.
Tereza voltava para sua casa, em sua mão uma sacola com uma garrafa de pinga e outra de conhaque. Sua pele manchada e corpo obeso escondem a beleza de outrora, apenas seus olhos verdes ficaram.
O trabalho de gari foi árduo, o pior era quando a molecada caçoava.
– Tereza cafetina.
– Terezinha cafetina.
http://contospoesiacia.blogspot.com.br/
Adonis declamando Drummond em árabe, na Flip, foi magistral!
foi, sim !