O escritor turco Orhan Pamuk recolheu uma quantidade impressionante de objetos enquanto escrevia o romance “O Museu da Inocência”, nome que batiza agora o museu recém-inaugurado em Istambul com toda essa tralha — tratei disso nesse post aqui.
Um pouco como Pamuk, o jornalista Lira Neto também reuniu vasta memorabilia (imagens acima e abaixo) para escrever sua biografia de Getúlio Vargas, trilogia cujo primeiro volume chega agora às livrarias.
Não foram apenas canecas, selos, bonequinhos o que encontrou. Nas suas pesquisas laterais, vamos chamar assim (para diferenciá-la daquelas que são as mais essenciais e previsíveis, como as de cartas, discursos e obras sobre o político), localizou até sambas e marchinhas relacionadas ao personagem e à época, que coincide com a do surgimento do rádio e de cantores e compositores populares. A trilha musical da biografia começou a tocar em sua Rádio Catete, vá por aqui para escutar a canção mais recente no ar.
Lira Neto conta ao blog como fez para encontrar músicas e objetos que o ajudaram a construir sua narrativa.
Para quem está em São Paulo: é nesta quarta, 23/5, às 19h30, o lançamento do livro na Livraria da Vila, a filial da Fradique Coutinho, onde o autor conversará também sobre biografias com Fernando Morais, autor de, entre outros, “Chatô”, “O Mago” e “Olga”.
Vá por aqui para ler textos sobre “Getúlio” que saíram na Folha, e vá por aqui, até o site oficial, para ler o que publicaram outros jornais e revistas.
Sua Rádio Catete está no ar. Pode contar que pesquisa musical você fez? “A pesquisa para a realização de uma biografia exige o garimpo em uma multiplicidade caleidoscópica de fontes. Costumo ficar atento a tudo o que possa, de um modo ou de outro, conduzir a narrativa e o leitor para os cenários de época. Isso exige, por exemplo, um delicioso garimpo pela música do período retratado. No caso de Getúlio, tal recurso ganha ainda maior relevância justamente pelo fato de que o biografado chegou ao poder exatamente no momento em que o rádio começava a se afirmar como um grande veículo de comunicação de massas. Neste momento, para a realização do volume 1, concentrei-me nas marchinhas e sambas do final da chamada Primeira República e naquelas que tematizam a Revolução de 30 e os anos iniciais do getulismo. Difícil dizer quantas músicas ao certo ouvi. Foram dezenas, talvez centenas.”
Onde encontrou as marchinhas e os sambas? Em sebos, na internet, com especialistas? “Os sebos sempre são uma mina de ouro para qualquer biógrafo. Mas, hoje, a busca por raridades musicais e bibliográficas está ao alcance de um clique no mouse. Há inúmeros ‘sebos virtuais’, nos quais se pode adquirir velhos bolachões de cera. Compro esse material e transfiro todo o conteúdo para o suporte digital. Ouço depois no próprio computador de trabalho. Cheguei a escrever alguns trechos do livro ao som das marchinhas de Lamartine Babo, Eduardo Souto ou Freire Júnior, verdadeiros cronistas musicais daquele tempo. Sempre conto com a ajuda inestimável de um amigo que sabe tudo sobre música popular brasileira, Thiago Mello (
http://bossa-brasileira.blogspot.com.br/), que desde a biografia de Maysa me ajuda a garimpar tesouros sonoros e, mais do que isso, em certos casos, realiza um meticuloso trabalho de restauração das faixas originais”.
Getúlio gostava de música? Tocava alguma coisa? “Getúlio não tinha propriamente habilidades artísticas. Mas adorava viver cercado de intelectuais e, também, de artistas populares. Adorava, em especial, os espetáculos de teatro de revista. Ainda em Porto Alegre, desde jovem, era assíduo frequentador do Clube dos Caçadores, um célebre cabaré chique da capital gaúcha, que de “clube” tinha apenas o nome; e de “caçadores”, apenas a metáfora.”
O que Getúlio gostava de ler? Gostava também de cinema? De esportes? “Na juventude, nos tempos da faculdade de direito, Getúlio leu muita literatura e alguma filosofia. Era então um leitor compulsivo de Nietzsche, Darwin, Spencer. Também era um entusiasta de Émile Zola. Curiosamente, o homem que mais tarde, no exercício do poder, utilizará a Igreja como instrumento político, era quando moço um anticlerical ferrenho, alguém que acusava o cristianismo de ter representado um atraso à evolução cultural da humanidade. Aos domingos, sempre levava a família ao cinema, para ver os lançamentos da tela. Nos esportes, gostava de jogar golfe. E não dispensava prosaicas partidas de pingue-pongue com a mulher Darcy, nos intervalos do expediente de despachos. ”
Imagino que teve de pesquisar também mapas de lugares, mobiliário, roupas, acessórios. “Sempre procuro fazer um trabalho de imersão nos cenários em que meus biografados viveram. Estive em São Borja, visitei a casa onde ele morou, fui à estância onde se ‘auto-exilou’ após a derrubada do poder em 1945. Passeei pelas ruas de Ouro Preto, onde Getúlio estudou, e percorri seus caminhos em Porto Alegre, onde viveu por muitos anos. No Rio, também procurei refazer seus trajetos entre os palácios do Catete e o Guanabara. Também colecionei estatuetas, selos, moedas, cartazes, impressos, toda uma memorabilia getuliana, que agora decora meu escritório de trabalho. Os leitores perceberão no livro o cuidado na descrição de móveis, roupas, casas, ruas, enfim, da atmosfera visual da época. É uma forma de convidá-lo à cena.”
O Museu da República, no Palácio do Catete, tem a carta-testamento e até o revólver com que Getúlio se matou. De que modo aquele lugar representa o Getúlio de seu livro ou está em desacordo com o personagem que encontrou? “O Palácio do Catete guarda muito da história republicana. Sempre que estou entre aquelas paredes me vem um certo arrepio, uma excitação explícita, por estar pisando o cenário que mudou a história republicana brasileira. Quando Getúlio voltou contra o próprio peito o cano do Colt de cabo de madrepérola estava deixando de ser um mortal para se tornar um mito. Foi o gesto extremo que o eternizou na memória coletiva. Aquele lugar me mobiliza tanto que o lançamento no Rio de Janeiro será lá, no próprio Catete.”
Da Rádio Catete para Livros Etc
Como brinde de pé de post, Lira Neto cedeu ao blog duas músicas vindas de sua Rádio Catete.
Uma é a marchinha “Seu Julinho vem”, de Freire Júnior, na voz de Francisco Alves. A música se transformou em verdadeiro jingle da campanha de Júlio Prestes, o oponente de Getúlio nas eleições de 1930.
A outra é “Bico de Lacre não vem mais”, marchinha de Oswaldo Santiago lançada após a Revolução. “Bico de lacre” era o apelido de Júlio Prestes. O narigão vermelho o fazia parecer o passarinho de mesmo nome.
Parabéns ao Lira, ams ele que me perdoe, em matéria de meorabilia, ninguém bate tão cedo o João Paulo Cavalcanti Filho em seu arremate das peças de Pessoa:
Integrante da Comissão da Verdade, ministro da Justiça interino no Governo Sarney, advogado e autor do livro “Fernando Pessoa _ Uma quase biografia”, José Paulo Cavalcanti Filho arrematou num leilão, na noite desta terça-feira em Londres, a escrivaninha e a máquina de escrever nas quais o poeta português trabalhou durante quatro anos a partir de 1934, quando era empregado da Sociedade Portuguesa de Explosivos. Pela máquina de escrever, da marca Royal, avaliada em 5.000 euros, Cavalcanti pagou 22.000 euros (mais ou menos 55.000 reais). A escrivaninha, de mogno, avaliada em 10.000 euros, foi arrematada por 55.000 euros (quase 140.000 reais). O brasileiro não esteve presente ao leilão, mas deu seus lances por telefone
Estou muito curiosa para ler essa biografia! Obrigada pela visita, Sergio. Apareça.
Olá, a Geração Editorial também lançou uma biografia do Getúlio Vargas – A esfinge dos Pampas, pelo autor Richard Bourne. Já leu esse ? Me parece bom também.
que engraçado, josélia. tenho uma versão em bronze da segunda estatueta à esquerda (só que sem pedestal). parece que eram brindes das campanhas eleitorais. isso diz minha mãe.
a que tenho aqui era da minha avó, prima do carlos lacerda (esquésito, hein? hahaha).
minha mãe sempre lembrava (agora ela lembra menos) do dia em que Getulio se matou, a notícia saiu no rádio, os trabalhadores foram todos liberados para voltar para casa, a rua em silencio, o medo de o país ficar sem alguém que tomasse conta…
O trabalho de Lira Neto é realmente de tirar o fôlego. Getúlio é um personagem monumental merecia uma biografia a altura. Agora, eu adoraria conhecer o “Museu da Inocência” em Istambul, por enquanto, já estou separando o livro p/ ler.
Um abraço, Josélia