Juan Gelman: "encontrar um desaparecido é honrá-lo, dar-lhe um lugar na memória"
30/03/12 13:06
Juan Gelman, quase 82, para muitos o maior poeta de língua espanhola das Américas, está a poucas semanas de encerrar a jornada dolorosa que começou em 1976, quando o primogênito, Marcelo, e a nora, María Claudia, grávida de oito meses, foram presos pela ditadura militar na Argentina.
Gelman já conseguiu enterrar Marcelo. Falta sepultar María Claudia, de quem podem ser os ossos encontrados num quartel uruguaio no último dia 14.
O resultado do exame de DNA sai em abril – quem sabe nos dias em que Gelman vai estar em terras brasileiras, aonde chega do México, lugar do seu exílio, para a primeira Bienal do Livro de Brasília, entre os dias 14 e 23.
Faz mais de uma década que Gelman visitou o país de Drummond e dos irmãos Campos, a quem cita como alguns dos preferidos. Na breve conversa por telefone que tive com o poeta na última segunda-feira, ele me disse, com sua voz sempre muito baixa e gentil, que pode, sim, viajar a outras partes do país para participar de eventos literários (atenção colegas que fazem curadoria: não percam a oportunidade).
Se não for de María Claudia, o esqueleto será de mais um dos desaparecidos que sua missão, ao mesmo tempo pessoal e política, ajudou a sepultar. Não houve só angústia na busca. A neta Macarena, um dos cerca de 500 bebês que o regime militar fez sumir com adoções ilegais, Gelman pôde encontrar em 2000, data em que a moça enfim soube de sua verdadeira filiação.
O senhor está às vésperas de encerrar a busca que iniciou há 35 anos. “Cada vez que aparecem ossos, fico ansioso, desejando que seja finalmente. Não sei se vai ocorrer uma confirmação. O que encontraram foi um esqueleto completo, isso é importante para a identificação. Aguardamos agora o resultado do DNA.”
O que representa, pessoal e politicamente, localizar os desaparecidos? Aqui no Brasil também se quer mudar a lei de Anistia para abrir arquivos. “Meu filho foi assassinado com um tiro na nuca pela ditadura e ficou 13 anos desaparecido. Até que seus restos foram encontrados na Argentina. Pude dar-lhe uma sepultura. É reparador. Enterrar os mortos queridos é algo que existe desde tempos muito antigos. Encontrar um desaparecido é honrá-lo, dar-lhe um lugar na memória. A palavra ‘desaparecido’ esconde quatro atos – o sequestro, a tortura, o assassinato e o desaparecimento. Porque sabemos que não estão desaparecidos, sabemos que estão mortos.”
O senhor, que continua a colaborar com regularidade nos jornais, escreveu há pouco tempo que a crise econômica mundial pode ter como consequência o surgimento de novos regimes autoritários. “Sim, tudo isso é possível. Penso que a crise pode durar muito tempo. Mas me preocupa muito nesse momento a situação no Oriente Médio. Esse senhor presidente do Irã nega a Shoah [holocausto, como é chamado em iídiche], tem atitudes profundamente autoritárias. Com a situação do Irã, pode-se chegar, oxalá que não, a um conflito atômico, o que seria uma tragédia mundial.”
A poesia como resistência é outro dos temas que costuma abordar nos artigos que escreve. “O enriquecimento do leitor com a poesia se dá ao descobrir caminhos interiores que ignorava ter. A crise não é só econômica, é sobretudo espiritual, de honra e solidariedade. Faz muitos anos que impera um darwinismo brutal, terra fértil para qualquer autoritarismo. Mas a poesia atravessa os séculos, apesar das catástrofes naturais ou produzidas pelo homem. É uma situação mais ou menos inevitável. Para o leitor, evitável, mas para quem escreve, não.”
Ao Brasil, o senhor chega para comparecer a uma bienal. Na abertura da feira de Madri do ano passado, disse uma frase engraçada: “há tantos títulos, tantas tentações à venda, que eu mesmo não consigo comprar nada e me admiro do leitor que visita uma feira de livros”. “Sim, há tantos livros que não compro nenhum. Mas as feiras vendem muitos; significa que talvez haja leitores que conseguem escolher melhor do que eu.”
Alguns autores, como Mario Vargas Llosa, estão muito preocupados com a possibilidade de, com a internet, termos cada vez menos leitores. “As notas e resenhas na internet provocam curiosidade para os livros. A internet me parece uma boa ajuda para conhecer autores, principalmente os que ainda não foram traduzidos. Não estou certo de que o livro impresso vá desaparecer.”
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De Juan Gelman, vi que as livrarias brasileiras têm poucos títulos: “Amor que serena, termina?”, cuja nova edição a Record anuncia para o evento em Brasília; “Isso”, que saiu pela editora da UNB; e “Composições”, o mais recente, pela Crisálida. É hora de colocar nas prateleiras obras como “Gotan”, de poesia, e “Miradas”, que reúne alguns dos seus artigos mais recentes.
ATUALIZAÇÃO às 19h – Para quem quer ler mais, Sylvia Colombo, vizinha de blog na Folha, escreveu dois posts hoje relacionados a livros e Argentina: aqui, sobre livros que tratam da ditadura, aqui, sobre as dificuldades de importar livros.
É uma pena que no Brasil a busca pela verdade, pelos desaparecidos enfrente tantos percalços.A definição de Gelman que desaparecimento traveste quatro atos(sequestro, tortura, morte e desaparecimento) é perfeita.
Muito obrigado pelo post, Josélia
Gelman tem muita lucidez e, apesar de tudo, bastante serenidade. Apareça, Célio.
Adorei a entrevista. O tratou com muito carinho. Legal.
Nessa semana, sofremos com a morte de uma das cabeças mais importantes do século XX. O gênio Millôr se foi e deixou pra gente um punhado de lições importantes. Aos amigos interessados no assunto, sugiro a leitura:
http://futebologiabrasil.blogspot.com.br/2012/03/armazem-de-secos-e-molhados.html
um abraço