Tabucchi: "o tempo não é uma coisinha simples, não se apanha com o rolex"
28/03/12 12:01Não sabia que Antonio Tabucchi estivesse doente. A notícia de sua morte, moço aos 68, de câncer na Lisboa de que gostava tanto, supreendeu no último domingo seus leitores, pelo menos os que conheço e o que pude ver da imprensa do exterior.
Quando ia sair aqui “O Tempo Envelhece Depressa”, suas nove histórias como as de Sallinger, fiz uma entrevista com Tabucchi para o jornal “Valor Econômico”. Era meados de 2010.
Não foi uma operação simples. Entre percalços e suspense, aguardei por semanas as respostas, que chegariam por escrito. Sabia que ele só responderia se aprovasse as perguntas, em número restrito; conhecia (não sei se é folclore) um famoso episódio em que interrompera uma entrevista por telefone porque considerou que as questões não eram suficientemente boas. O que posso dizer é que, leitora àquela altura de quatro livros seus, fiz vários rascunhos, duvidei que fosse capaz de agradá-lo, até hoje paira certa suspeita apesar do fax recebido — fui a única, depois não falou com mais ninguém.
A minha homenagem ao escritor italiano que tanto amou a língua portuguesa segue aqui: trechos de suas bonitas respostas, que não foram publicadas na íntegra porque o texto saiu no formato “texto corrido”, como dizemos no jargão, e não “pergunta-resposta”. A grafia foi mantida, tal como escrevera.
A PASSAGEM DO TEMPO – “Às vezes neste livro o tempo não passa. Ou melhor, passa, mas à sua maneira. Passa todo duma vez, cinquenta anos num dia. Ou volta atrás. Ou faz curvas. Ou estaca como o burro e recusa-se a avançar. O Tempo não é uma coisinha simples, não se apanha com o rolex. Há o Tempo de Santo Agostinho e o Tempo de Zenão de Eleia. O Tempo da consciência de Bergson e o Tempo da Física de Einstein (aliás, para ele há três Tempos, e, na terceira categoria, o Antes e o Depois são diferentes consoante a posição do observador). A ideia de tempo do mineiro encerrado há três meses a 700 m debaixo da terra e a do banqueiro que no flash dum e-mail envia um milhão de dólares para um “paraíso fiscal” não podem ser a mesma. E o tempo de A Terceira Margem do Rio de Guimarães Rosa será o mesmo do de um empregado de São Paulo? O tempo da democracia e o do totalitarismo são iguais? O tempo de uma mulher dum país fundamentalista que para não ser lapidada tem de vestir burka e o de uma moça de tanga que apanha sol na praia de Ipanema será o mesmo? O tempo do calendário gregoriano colocou aquelas duas mulheres no mesmo ano solar, mas por um puro acaso. Para passar à narrativa do século 19, Proust, Pirandello e Pessoa falam dos caprichos e dos mistérios do Tempo. Mas sob este aspecto, o romance moderno começa muito antes, com o Dom Quixote de Cervantes e continua com Tristam Shandy de Sterne, com Lewis Carroll e James Joyce. É verdade que, hoje em dia, as livrarias de todo o mundo estão cheias de livros de capa dourada e letras em relevo que vendem milhões de cópias mas são livros apenas para matar o tempo.
ROMANCE X CONTO “Ao género narrativo “romance”, eu também lhe dei o meu contributo pois, dos 20 livros de narrativa que escrevi ao longo dos anos, 7 são romances. A falar verdade, não foi com o romance que eu alguma vez tive problemas: coitado, é uma forma tão aberta e disponível. Ao invés, é o conto (as “estórias”, como lhe chamava o Guimarães Rosa) que me deu sempre problemas, e por isso gosto de os escrever. O conto é mais “fechado”, é como o soneto em poesia. Mas isto já foi dito por Borges e por Cortázar. Aliás, seria bom ler também O Tempo Envelhece Depressa como um conjunto único, uma pintura feita de várias peças. Pense, por exemplo, nos quadros de Arcimboldo: para entendê-los bem é preciso afastar-se um pouco. Se os olhar muito de perto, você verá um conjunto de frutas e legumes: maçãs, curgetes, cenouras, etc. Mas se olhar à devida distância, verá o rosto de uma figura humana, quer represente o pródigo verão ou o rígido inverno. Olhe, eu tentei fazer a figura do tempo em que vivemos com aquilo que tinha à disposição. Como diz Woody Allen, tocando à porta duma amiga com um cesto na mão: “Trouxe-lhe os legumes de estação, my dear”.”
O CONTO “YÓ ME ENAMORÉ DEL AIRE” “O conto passa-se no Jardim Botânico de Lisboa. Os elementos de reconhecimento são escassos: os azulejos, que, como se sabe, os portugueses levaram para todos os países que descobriram; dados históricos (o terramoto que quase destruiu Lisboa em 1755); dados topográficos (as duas grandes praças uma a seguir à outra, o Rossio e os Restauradores). A canção que dá o título ao conto é uma balada sefardita do século XVI, quando os Judeus da Península Ibérica foram expulsos de Espanha e de Portugal.”
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O leitor pode se perguntar por que diabos gastei uma das perguntas para saber que música era –caprichos de leitora!
A resposta mais simples é que adoro música de época antiga e medieval, aquilo que, para a rápida compreensão geral, se passou a chamar sintética e benevolamente de “early music”.
Como brinde de pé de post, aqui vai “Yo me enamoré del aire” pescada do youtube, com um dos grandes intérpretes do gênero, Jordi Savall (que formava um belo par com a soprano Montserrat Figueras, morta também tão cedo, ano passado).
Em tempo: a Cosac Naify publica em setembro seu “Noturno Indiano”, que já teve edição por aqui pela Rocco. Outros três estão previstos, ainda sem data.
Vá por aqui para ler o que escreveu o catalão Enrique Vila-Matas sobre o colega italiano, entre outros posts em homenagem a Tabucchi no blog da Cosac Naify.
Tenho “Noturno indiano” do Tabucci, achei muito interessante o tema do tempo, vou comprá-lo. É uma pena que nao estou em Sampa para ver a mostra da Casa das Rosas, estou em Kassel na Alemanha, vendo a Documenta e vou partcipar na Off Documenta com um solo de Danca.
Esse conto é das coisas mais lindas que já li.
é sim! me faz me lembrar daquela frase de Antonio Vieira, “Deus deu vida a Adão com um sopro, porque a vida do homem é vento”.