A nova e já polêmica biografia do imperador: "Javier Bardem seria um perfeito Pedro I", diz autor espanhol Javier Moro
22/03/12 14:36Autor de histórias romanceadas que se tornam best-sellers em vários países do mundo, como “Paixão Índia” e “Sári Vermelho”, Javier Moro, espanhol, 57, dedicou-se durante três anos a Dom Pedro I, a quem vê como misto de Dom Quixote e Don Juan, cuja história, “fabulosa mas bastante vilipendiada”, precisava viajar.
“O Império é Você” é seu romance sobre Pedro I que vendeu 400 mil exemplares na Espanha e lhe fez merecer o prêmio robusto de 600 mil euros da sua editora, o grupo espanhol Planeta. No Brasil, segundo país onde publica o livro, os leitores ainda não reagiram, mas colegas de empreitada sim: autores de obras que têm Pedro I como personagem, os jornalistas Laurentino Gomes (“1822”) e Iza Salles (“O Coração do Rei”) viram no romance de Moro clichês, imprecisões e erros, de acordo com reportagem publicada pelo jornal “O Globo” —por aqui, você chega até lá.
Com certo humor e um bocado de branda indignação, Javier Moro conversou comigo na segunda-feira no jardim do hotel em que se hospedou em São Paulo. Horas depois, viajaria para autógrafos e entrevistas em Belo Horizonte, Curitiba, Brasília, Rio de Janeiro –fica duas semanas no país.
A reação de Laurentino Gomes e Iza Salles, segundo Moro, decorre de nacionalismo, o que considera “uma estupidez”. Diz que, como romancista –com experiência em cinema e TV nos EUA, onde colaborou com Ridley Scott, diretor de filmes como “Blade Runner” –, concentra-se no drama e inventa cenas e diálogos, apesar de se cercar de material histórico. “Estão julgando um barco como se fosse um carro.”
O senhor já respondeu a essa pergunta em outras entrevistas, mas vou fazer de novo: como descobriu Dom Pedro I? “Foi quando morei no Brasil entre 1989 e 1990 para fazer o livro sobre Chico Mendes [“Caminhos de Liberdade”, de 1992]. Eu me apaixonei pelo Brasil, aqui fiz bons amigos e o senti como meu segundo país. Quis saber sobre a história do Brasil, e havia esse personagem que me seduziu muito. Primeiro porque, filho de Carlota Joaquina, ele tinha muito de espanhol, em seu caráter, seu temperamento. Em sua educação também: nos primeiros anos de vida, foi criado pela mãe e as criadas espanholas.”
Foi essa ligação com a Espanha que o seduziu? “Não, porque se os chineses tivessem me contado sobre um grande personagem chinês, teria escrito sobre ele. Não sou nada nacionalista.”
Por que quis escrever sobre ele? “Nunca encontrei um livro sobre independência do Brasil como eu gostaria de ter escrito. Pressenti que era uma história grande. Não era só a biografia de Pedro I. Queria fazer o grande épico da independência do maior país da América do Sul através da família real. Queria contar essa história, que coincide com o fim do absolutismo e o princípio da luta pela liberdade. E aí vi que Pedro I era um personagem vilipendiado pela história.”
O senhor comenta em entrevistas que entendeu que Pedro I não era aceito nem no Brasil nem em Portugal… “Acabo de descer no elevador com um senhor brasileiro muito simpático que, quando contei que escrevi esse livro, me disse imediatamente: “mas por que não escreveu sobre Pedro II?” Não é o primeiro que me falou isso. Não escrevi porque Pedro II era demasiado perfeito. Era formal, tinha uma só mulher, era culto, falava seis idiomas, reinou 50 anos, acabou com a escravidão. Que vou contar dele? Seria como contar a vida da Madre Teresa! Ninguém ia ler. O pai é um personagem muito mais interessante, pois muito mais contraditório. Creio que maltratado pela história porque é incômodo. É incômodo dar-lhe importância. O cara era o cúmulo da contradição”.
Há livros sobre a história do Brasil que relativizam a importância de Pedro I… “Discordo. Esse personagem foi fundamental. Não teve o devido reconhecimento histórico no Brasil. Não tanto por sua vida dissoluta, mas porque ele nunca entrou num molde. No Brasil, achavam que era demasiado português, e os portugueses achavam que era traidor. Mas ele não era nacionalista brasileiro, nem nacionalista português. Ele era o imperador do mundo lusitano. Para ele romper com qualquer uma das partes era difícil.”
Pelo visto, a história dele agradou a Espanha. Já vendeu 400 mil exemplares. “Os espanhóis não sabiam nada de Portugal, do Brasil menos ainda. E há uma história comum, Espanha e Portugal teriam sido um único país.”
A rivalidade explica o desinteresse? “A rivalidade é normal entre vizinhos. Os franceses pensam que os espanhóis são de segunda. Os espanhóis, que os portugueses e os marroquinos são de segunda. Os brasileiros pensam o mesmo de bolivianos e paraguaios. O que não é normal é a ignorância total, porque a história de Portugal é fascinante. Como Portugal, sendo um país tão pequeno, chegou aos quatro continentes e pôde manter unidas suas colônias, e a Espanha, um país imperial, conseguiu fragmentar as colônias a tal ponto que, se você olha, é um desastre. Creio que o fato fundamental é que a família real portuguesa mudou o centro de gravidade do império para cá, coisa única na história, nenhuma monarquia se transferira para as colônias. É uma história fabulosa. Eu reivindico o mesmo que Saramago: fazer uma federação ibérica”
O senhor concorda com Saramago? “Claro! A ideia é fantástica.”
Saramago ganhou antipatias em Portugal com essa ideia, e seu livro ainda não foi lançado lá…. “Mas é perfeita a solução. Somos todos ibéricos, como dizia Saramago. Essa é a grande verdade. É que hoje não dá para falar muito disso na Espanha, porque é tão grande o problema da dívida de Portugal….”
Como fez as pesquisas sobre Pedro I? “Lendo tudo o que estava escrito. Em Lisboa, consultei bibliotecas de lá. Fui onde nasceu e morreu.”
Viu o coração de Pedro I no Porto? “Não deixam ver.”
Está no youtube! “Ah, sim? Depois, vim a São Paulo. Pedro Corrêa do Lago [bibliófilo e editor] me ajudou com muitas fontes. No Rio, fui a bibliotecas, livrarias, sebos, lugares onde Pedro I passou. Voltei com uma grande documentação. Fiquei durante um ano só lendo. Eu queria encontrar qual era a coerência nas incoerências do personagem. Para poder fazer um Pedro I humano, para que pudessem simpatizar. Com aquelas atitudes terríveis, o leitor ia parar de ler. Um amigo que faz filmes me recomendou ver a série americana dos “Sopranos”. Fui ao Corte Inglés [grande rede de lojas]. Comprei tudo e vi em poucos dias”.
Os “Sopranos” então o ajudaram a compreender Pedro I? “O personagem principal é um mafioso de Nova York que mente, engana a mulher, mata os amigos, faz negócios sujos. Mas você certamente iria jantar com ele!”
E qual era o charme de Pedro I? “Seu caráter, como tenho repetido, era uma mescla de Dom Quixote e Don Juan. Ao fim, é mais um Dom Quixote. Era no fundo mais bom do que mau. E se mostrou como herói na Batalha do Porto, lutando pelas ideias que defendia. Sempre esteve ao lado da liberdade e da justiça. Pedro II era sério, racional, meditava antes de decidir. Mas foi a loucura de Pedro I que ajudou a fazer o Brasil independente.
O senhor cita na sua bibliografia os livros de Laurentino Gomes e Iza Salles, os mesmos que o criticaram no jornal. Como o senhor se defende? “Estou encontrando o mesmo nacionalismo que encontrou Pedro I. Dizer que é neocolonialismo de Espanha! Isso é uma grande estupidez. Essa gente acredita que sou um estrangeiro que vai ganhar dinheiro com uma história que só pertence a eles. Gosto muito do livro de Laurentino Gomes. Mas é um livro de jornalista, não é literário. O livro de Iza Salles não é livro de história nem romance. São livros que não viajam. Queria fazer o contrário. Queria contar a história fabulosa desse homem de um modo que não interessa ao nacionalismo brasileiro, no sentido estrito. Estão julgando um barco como se fosse um carro”.
Uma passagem do livro parece ser a mais polêmica, quando Pedro I se casa em uma cerimônia que seria de candomblé. “Essa é uma leitura maliciosa do meu livro. Eu procuro ser fiel ao material histórico, mas dramatizo, invento cenas e diálogos, me interessa entrar na psicologia do personagem, estabelecer conflito. Seu conflito é que é herdeiro mas quer ser homem como os demais. Quando seu pai quer que se case com Leopoldina, porque é um negócio de estado fabuloso, os Habsburgo são a grande potência, ele está enamorado de uma bailarina francesa. Eu inventei um diálogo. Faço uma cena entre o pai e o filho. O pai lhe diz, “você pode amar como homem, mas tem de casar como príncipe”. O filho, que está apaixonadíssimo, tenta por todos os meios convencer o pai. Ele diz uma mentira ao pai. “Já estou casado”. “E com quem está casado?” É aí que ele diz que se casou numa cerimônia africana. Pois havia uma corte africana paralela que era convidada para os eventos reais. Ele inventa isso para tentar enganar o pai.”
O senhor agradece no livro a historiadores que o ajudaram nas revisões. Pode dizer que revisões foram essas? Manuel Lucena, especialista em América do século 19, foi o primeiro que viu o manuscrito. Devolveu com tantas notas! Uma delas, por exemplo, me dizia que naquela época não se dançava flamengo, as danças espanholas eram outras. Coisas assim: anacronismos, imprecisões. Depois, dois historiadores brasileiros leram também.”
Na Índia, sua obra também foi recebida com polêmica. “Foi uma polêmica terrível. Eles não queriam que o “Sári Vermelho” saísse na Índia também por nacionalismo. Trata de uma personagem real, Sonia Maino [hoje Sonia Gandhi, viúva de Rajiv Gandhi], que é italiana. Não queriam que se falasse da parte italiana da Índia. E conseguiram assustar editores em língua inglesa. Então o “Sári Vemelho” saiu na Alemanha, na França, em vários países, menos na Índia. E há sempre a polêmica com personagens vivos: a imagem que têm de si mesmos é diferente.”
Como se preparou para fazer romance com história? Pode falar de seus mestres? “Fui assistente de Dominique Lapierre e Larry Collins. Trabalhei com eles em muitos livros. Escreveram, por exemplo, “Esta Noite a Liberdade”, um livro fantástico sobre a Índia que hoje é lido nas escolas. É um livro escrito por um francês e um americano. Gente que não tem contato cultural com o tema. É melhor não ter, porque dão perspectiva distinta. Um brasileiro pode se interessar pelos livros de Laurentino Gomes e Iza Salles, mas um espanhol, chinês ou americano, não.”
Alguém já se interessou em fazer um filme com seu Dom Pedro I? “Ainda não. Mas acho que Javier Bardem seria um perfeito Pedro I.”
E quem seria Domitila? “Não sei. Teria de ser uma nova Sônia Braga. Quem seria?”.
Aqui há o mesmo problema com a readaptação de “Gabriela” para a TV. “Não sei qual atriz, mas tem de ser brasileira.”
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A foto que abre o post, cedida pelo autor, foi feita no quarto Dom Quixote, no Palácio de Queluz, em Portugal, onde nasceu e morreu, aos 35 anos, Dom Pedro I —vá por aqui para visitar o site.
Ao leitor que chegou até o fim, o blog deixa como brinde o coração de Dom Pedro I, IV de Portugal, pescado do youtube.
A história não é apenas o relato do passado (historiografia) é a própria existencia, acontecendo em todas as suas nuances… Cada um de nós a percebemos de um ponto de vista… Estive em Portugal e vi o respeito que têm por Pedro IV (nosso I)… esse homem extraordinario é um caleidoscópio, portanto polêmico!
Fiquei curiosa em conhecer mais essa obra… o artigo é bem esclarecedor e instigante … o autor um romancista!
Concordo com Ayde. Assustou-me a reação que alguns intelectuais baianos tiveram – com alguma razão – contra o livro que Nelson Motta escreveu sobre Glauber. Ficou a impressão de que queriam massacrar um intruso, alguém de fora do meio. A Bahia, que já gerou tantos gênios, não precisa disso.
Celene, nesse caso vou discordar um pouco de você. Não só porque sou baiana, risos. Sem duvida ser intruso em algum lugar é muito dificil (e olha que ja fui e sou intrusa em muitos lugares). É que Nelson Motta escreveu um livro de não ficção –Moro faz ficção– sobre a juventude de Glauber. Não sobre a vida, mas precisamente a juventude. E os que se indignaram foram os amigos com quem ele conviveu no período. Acho que é uma situação um pouco diferente.
Ao ler sua ótima entrevista me ocorreu uma “epifania”: como é cristalizada a visão que temos das coisas de nosso próprio quintal.
Ayde, que bom que gostou. Vou fazer um segundo post em breve para desdobrar o tema “O queijo e a goiabada: Dom Pedro I e suas representações no Brasil e além mar”. Ó. Até parece nome de dissertação 🙂
Oi Josélia, acho muito estranho essa critica do Laurentino Gomes.Numa entrevista,não lembro p/ qual revista, ele deu uma boa ironizada nos historiadores que criticavam sua obra.Se Javier Moro deixa claro que é um”romance histórico”as liberdades tomadas sõa perdoáveis, mesmo o perfil discutível que ele faz de D Pedro I. Agora, resta saber, se ele faz boa literatura.
Célio, vou voltar a esse tema muitas outras vezes. Sou jornalista, mas desde 2003 faço parte do programa de pós graduação do departamento de história da USP. Ingressei oficialmente em 2005 como aluna de mestrado, já concluído. Estou agora num doutorado, que tenho de terminar num prazo de dois anos. Vi polêmicas assim surgirem várias vezes, e há várias nuances, muita gente séria que briga com ou sem razão, por questões importantes ou bobas.
O que acho e sempre acharei mais grave é a ideia de que a história é uma só, única. Ninguem em nenhum tempo fez ou poderá fazer uma história única, “verdadeira”. Esse é aliás um pensamento bastante perigoso.
Cara Josélia, vc tem razão. O assunto é amplo demais. Agora, de cabeça, lembro de dois livros muito importantes escritos por jornalistas: A Revolta da Chibata de Edmar Morel e Combate nas Trevas de Jaco Gorender, não tenho certeza se o Gorender era jornalista, mas ele era um historiador auto didata excelente. Ah e obrigado pelo post, é bom demais acompanhar seu blog.
Ótima e reveladora entrevista. É muito bom ver o autor falar da gênese de sua obra.